Muita planta nesse tópico que ficou um bom tempo sem nome. Tem uma roxinha que aparece na página 5 (eu acho) que foi bem assim. Quando a vi, achei que era uma das infinitas formas da Utricularia amethystina. Depois de um tempo, consultei o Taylor (pra quem não sabe, é a Bíblia de identificação das Utricularias

Não conseguia até que conheci o Felipe Martins, da UFPE, que tava fazendo mestrado revisando as Lentibulariaceae no Nordeste. Pra tirar a dúvida se era ou não algo novo, eu tinha que olhar um monte de coisa miúda. Precisava comparar se os utrículos, sementes e todo o resto eram mesmo diferentes. Se não, poderia ser só uma U. viscosa com uma flor mais bonitinha. Esse tipo de análise se costuma fazer em microscópios eletrônicos de varredura. São caríssimos, raros e muito difíceis de manipular. Eu nem de longe teria condições de ir atrás de um desses. Sei que algumas universidades tem (já usei um na USP de Piracicaba), mas até arranjar tempo pra visitar, um técnico pra fotografar e fazer todo o tratamento taxonômico.... Já viu que não ia dar, né?

Aí que o Felipe entra na história. Por estar diretamente envolvido com a dissertação dele, ele não tinha só o tempo, mas também as condições pra ir atrás de esmiuçar esses detalhes. Quando o conheci, mostrei fotos e disse tudo que sabia sobre ela. Depois perguntei se ele não queria desengavetar isso tudo. Claro que ele aceitou. Foi basicamente unir o útil (a minha descoberta da planta) ao agradável (o Felipe precisava publicar

Depois de muita conversa, eu ganhei a argumentação dizendo que o melhor nome era Utricularia glutinosa, que significa "grudenta" em latim. "Glutinosa", assim como a "viscosa" porque a haste floral é recoberta de glândulas que secretam mucilagem. A secreção é grudenta e pegajosa a ponto de capturar mosquitos desavisados. Seria um ótimo nome, né? Seria, porque assim que o artigo foi submetido, ele foi recusado. O revisor disse que precisávamos dizer se a planta não batia com uma coleta antiga da década de 30, em Caucaia no Ceará. Essa planta tinha sido descrita como Utricularia cutleri. "Cutleri", em homenagem ao britânico Cutler que financiou as expedições e coletas botânicas ao novo mundo. Bom... fomos atrás, né? Desabafando: a descrição da espécie era uma bela de uma porcaria. Tá... eu estou exagerando. Era uma descrição OK. Dava pra reconhecer a planta quando a visse na natureza, mas você não saberia distinguir nenhuma outra Utricularia de flor roxa da U. cutleri. O Steuermann, autor original, apenas disse que as flores eram roxas e que o resto era idêntico a Utricularia SUBULATA. Dá pra acreditar? Eu fiquei !@#$, mas infelizmente, o nome tinha sido publicado. Mais que isso, além de ser publicado, o material tipo ainda estava em boas condições. Significa que tivemos que engolir o novo nome pra resubmeter. Confesso que fiquei frustrado quando ele disse que o material era compatível. Parece que o Steuermann chegou numa conclusão certa por caminhos tortos.
Bom, no fim das contas publicamos uma especie nova com um nome antigo. O artigo ressucitando o nome Utricularia cutleri (estava como sinônimo de Utricularia viscosa) saiu no meio do ano passado. Este é o link para a página oficial:
https://doi.org/10.1600/036364419X15620114943864
https://bioone.org/journals/Systematic- ... 3864.short
E esse é o link pra onde você conseguirá achar o artigo de graça:

https://www.researchgate.net/publicatio ... morphology
E foi assim que (re)descobrimos uma nova especie.

Quando publicamos o trabalho, sabíamos que a planta existia em 3 estados, RN, CE e (pasmem) MT. Desde a coleta do Steuermann, ninguém mais a viu/coletou no Cerá. Três coletas perdidas no começo do século passado confirmavam que a planta existia no Mato Grosso, lá na Mata do Bacaba, que hoje faz parte da UEMT. As plantas de lá eram um tanto diferentes das que achei aqui no RN. As hastes florais eram bem mais compridas e as flores maiores, mas só coletando ela de novo pra confirmar se é realmente diferente. Até ser redescoberta, vai continuar como U. cutleri.
A melhor parte é que depois que publicamos o artigo, começaram a encontrar a Utricularia em outros lugares.

Acho que este foi o capítulo final da novela das Lagoas do Litoral do RN. Foi o último trabalho que pude desenvolver sobre o tema. Volta e meia ainda vou ver as plantinhas na natureza quando visito meus pais, mas meus tempos de explorador de fim de semana parecem ter chegado ao fim. Também preciso adimitir que não ando mais com saco de fazer upload das fotos em alguma plataforma pra depois trazer pra cá.

É isso, acho que posso dizer que adorei toda a trajetória que esse tópico criou. Nunca imaginei até onde ia chegar e fiquei bem contente em poder gerar uma contribuição científica permanente com o que começou em um fim de semana de boa na Lagoa do Carcará.
Como se diz em Natal, um cheiro!